Abílio Guerra e Fernando Mello Franco marcaram uma forte presença na Trienal, trazendo um conjunto de reflexões sobre o legado da arquitectura brasileira e a complexidade da sua situação contemporânea.
Abílio Guerra deu a conhecer o seu contributo para uma catalogação da arquitectura do seu país, um trabalho metódico com vista à construção de uma visão crítica e historiográfica do seu passado moderno aos dias de hoje. Uma arquitectura fortemente enraizada em influências corbusianas, de matriz europeia, cuja releitura evoluiu de formas muito inventivas, por vezes dissonantes e expressas na tensão entre a Escola Carioca e a Escola Paulista.
Reportando-nos a essas referências fundadoras, de Lúcio Costa e Óscar Niemeyer, Abílio Guerra descreveu os traços particulares da produção arquitectónica brasileira: a forma espaçada no território; o “pilotis” como elemento fundamental na relação com a natureza; e as decorrentes possibilidades plásticas do “concreto”. Trata-se afinal de uma arquitectura fundada no mito de fusão do homem com a paisagem, num sentido de relação com o meio que se pode identificar como proto-ecológico. Desenhando novas paisagens, assim se traduz “a arquitectura como instrumento e a engenharia como artifício”.
Reportando-nos ao momento presente, Abílio Guerra enunciou a bela imagem do “canto paralelo paulista” para se referir a esta corrente arquitectónica fortemente impressa nesta génese moderna. Uma arquitectura hoje marcada pela complexidade crescente dos problemas urbanos e as muitas tensões inscritas no seu tecido social e económico.
Fernando Mello Franco falou da sua condição de arquitecto na mega-cidade de São Paulo, uma cidade contentor da densidade de vivências e processos urbanos. “O nosso embate com esse país absolutamente complexo chamado Brasil”; é sobre esse contexto de desmesura e diversidade que desenvolveu o projecto dos “Vazios de Água”, trabalho resultante da participação da MMBB na Bienal de Roterdão 2007 cuja temática é “Power - Producing the Contemporary City”.
Trata-se de um projecto ambicioso que avança com uma estratégia urbana de larga escala, centrando-se numa alteração do paradigma do projecto de arquitectura e a sua relação com o conceito de infra-estrutura; entendida enquanto elemento essencial para estruturar uma relação sistémica com o território. Para Fernando Mello Franco, abordar o mosaico complexo da mega-cidade obriga a identificar os nós do sistema urbano para sobre ele actuar, numa espécie de acupunctura, em que uma intervenção específica pode irradiar um efeito sobre o território que o envolve. Estamos assim perante a falência do paradigma moderno da cidade planeada para se abraçar processos de crescente complexidade, tal a amplitude dos fenómenos urbanos com que se defronta.
Os “Vazios de Água” definem uma vasta intervenção infra-estrutural sobre o sub-sistema hídrico da cidade de São Paulo, enquanto suporte para a construção de uma coesividade que hoje lhe está ausente. É um projecto que faz reflectir a nova consciência sobre os problemas colocados pela ocupação humana: o conflito de escalas entre a super-estrutura necessária e os efeitos negativos da sua presença local. Em São Paulo o problema da água interfere assim directamente sobre a questão habitacional. As favelas ocupam espaços desadequados à urbanização, sem valor comercial como as zonas declivosas e áreas drenantes. Ocupam, afinal, os vazios necessários ao funcionamento dos sub-sistemas naturais da cidade. A proposta ensaiada por Fernando Mello Franco procura redefinir as fronteiras destes territórios, identificando os seus vazios difusos como o tecido de novas possibilidades de intervenção e com eles começar a instituir uma vivência urbana mais fértil e próspera.
Abílio Guerra é arquitecto e editor responsável pelo Portal Vitruvius.
Fernando Mello Franco desenvolve a sua produção arquitectónica na firma MMBB Arquitectos, em parceria com Marta Moreira e Milton Braga.